A rotina do Sol Nascente, a favela que desbancou a Rocinha como a maior do Brasil
Dados preliminares do Censo mostram que o Sol Nascente tem 32.081 moradias, enquanto a Rocinha, no Rio de Janeiro, tem 30.955
Por Paula Ferreira — Brasília
Em 2003, o compositor Paulo César Pinheiro gravou na canção “Nomes de Favela” uma constatação inevitável: “agora que cidade grande é a Rocinha”. Naquele mesmo ano, a mais de mil quilômetros da favela carioca, uma nova comunidade ainda engatinhava e começava a crescer no Distrito Federal a cerca de meia hora do Palácio do Planalto: a favela Sol Nascente. Vinte anos depois, neste mês, a comunidade no entorno de Brasília deixou a cidade grande da Rocinha para trás e foi considerada pelo IBGE a maior favela do Brasil. Dados preliminares do Censo mostram que o Sol Nascente tem 32.081 moradias, enquanto a Rocinha, no Rio de Janeiro, tem 30.955.
O IBGE considera como favela os territórios que foram ocupados de forma precária e que não possuem acesso a serviços públicos essenciais. A curta distância com o centro do poder não blindou Rejane Lopes da Silva, de 44 anos e mãe de dez filhos, de uma vida de escassez. Em sua casa de chão de terra na Fazendinha, comunidade mais vulnerável do Sol Nascente, o arroz ainda é feito em um fogareiro no chão, não há rede de esgoto, e a água só chega uma vez ao dia.
— Estou vivendo a vida como Deus dá. Depois que deu aquela doença as coisas ficaram ainda mais difíceis — diz, em referência à pandemia de Covid-19. — Estar em um lugar tão perto do governo e passar por isso é doído. Eles deviam ver as famílias que mais precisam.
No terreno de Rejane, vivem cerca de 20 pessoas da família. Sua filha mais velha tem 21 anos, e a mais nova, 5. Ela e pelo menos dois filhos são beneficiários do Bolsa Família. Além do benefício, doações e o trabalho do marido como catador mantêm o sustento da família.
De acordo com o Governo do Distrito Federal, oficialmente apenas 10% da população do Sol Nascente/Pôr do Sol é beneficiária do programa. O Governo do Distrito Federal (GDF) explica, no entanto, que o número real deve ser maior. Isso porque o Centro de Assistência Social (CRAS) responsável pela região é a unidade mais recente da política assistencial do DF, inaugurado em 2021. Devido a isso, as famílias da região estavam cadastradas em outras unidades da Ceilândia, o que dificulta o cálculo exato.
Diabética, Rejane reclama do acesso à saúde. Atualmente, há uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) para atender aos cerca de 91 mil habitantes do Sol Nascente/ Pôr do Sol, segundo projeção da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). A comunidade ainda conta com o Hospital da Cidade do Sol.
Família cozinha num fogareiro no chão: mesmo sem serviços público essenciais, famílias dizem que Sol Nascente não é favela — Foto: Fernando Donasci
As ruas de terra do trecho 3 do Sol Nascente são mais largas e vazias do que algumas vielas da Rocinha, mas nelas ainda persistem problemas comuns, como a dificuldade de transporte, a falta de saneamento e as construções irregulares, que indicam por que o local que tem status de Região Administrativa (Sol Nascente/ Pôr do Sol) foi classificado como favela pelo IBGE. Apesar disso, o GDF rejeita a classificação. Ao GLOBO, a Administração Regional do Sol Nascente afirmou que “não reconhece a região como favela, mas sim como uma região administrativa em grande desenvolvimento”.
Mesmo com famílias vivendo em situação precária, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) estima que cerca de 90% da região seja atendida com redes coletoras de esgoto. Os moradores da Fazendinha veem as máquinas instalarem manilhas a alguns metros de suas casas, mas ainda não são beneficiados por elas.
Termo “favela” rejeitado
O crescimento desordenado da favela, que em relação ao Censo de 2010 aumentou 31%, é um dos aspectos que dificulta a expansão do serviço, segundo o governo. Além disso, a existência de ocupações em áreas de proteção permanente ou em regularização, diz o GDF, faz com que a cobertura de distribuição de água (que beira 98% da cidade de acordo com dado oficial) muitas vezes não chegue a alguns lugares.
As características do relevo facilitam a expansão da favela. Enquanto na Rocinha é acidentado, no Sol Nascente a geografia favorece a ocupação com terreno plano e de acesso facilitado.
— A condição topográfica favorece o Sol Nascente a ter mais crescimento e mais ocupação. Um segundo aspecto é que o Distrito Federal ainda é uma região que atrai migrações. O padrão de migrações no Brasil inteiro cresceu, mas de uma maneira mais acelerada no Centro-Oeste e para Brasília do que para o Rio de Janeiro — explica o professor do da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Benny Schvarsberg. — Os dados da dinâmica migratória e demográfica brasileira mostram que não foram as grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte que mais cresceram. É como se houvesse uma saturação delas, e esses são fatores que estimulam e fazem com que a favela maior do Brasil tenha passado a ser o Sol Nascente.
Quando Ivete Bandeira, 52 anos, chegou ao Sol Nascente nos anos 2000 “ainda era tudo mato”. A líder comunitária, assim como boa parte dos primeiros moradores e dos que chegam ainda hoje na comunidade, foi para lá porque não queria mais viver de aluguel. Desde o final da década de 1990, proliferou a venda de pequenos terrenos no local a preço baixo, alguns moradores chegaram a pagar cerca de R$ 2 mil por um pedaço de terra. Ivete trocou um carro popular usado por um lote onde começou a construir sua casa. Ela criou uma das primeiras creches comunitárias do local e hoje coordena o Instituto Pingo de Ouro, que oferece aulas de esporte, distribui cestas básicas, e realiza ações sociais na favela.
Em uma volta pelo Sol Nascente, chama atenção a quantidade de obras sociais e igrejas pelo território.
Atualmente, a região administrativa do Sol Nascente/Pôr do Sol tem cinco escolas públicas que atendem ensino fundamental e três creches conveniadas. Até 2024, o governo afirma que finalizará outras duas unidades, uma de ensino fundamental e outra para a primeira infância. No Sol Nascente, moradores se queixam do risco de assaltos, sobretudo à noite, mas garantem que “é muito raro” presenciar troca de tiros. Dados da Secretaria de Segurança Pública do DF mostram que em todo o ano passado foram registrados 509 crimes contra o patrimônio, o que inclui roubo de pedestres, de casas e carros; assaltos em ônibus e comércio. Em relação ao número de registros de homicídio, foram 17.
— Aqui é um bairro pobre do Distrito Federal, mas chegar a ser favela não concordo. O ponto é os governantes entrarem no Sol Nascente e fazerem as coisas acontecerem —protesta ela.
O estereótipo de lugar violento e pobre faz com que os moradores rejeitem a classificação. Já nas favelas cariocas, apesar dos problemas causados pela ausência do estado, há a percepção do termo a partir de um viés identitário. A cientista política da Fiocruz Sonia Fleury explica que a ressignificação do termo “favela” ocorre de maneiras diferentes em cada local:
— Até mesmo o estado trata a favela de forma muito preconceituosa. O IBGE classifica como “aglomerados subnormais”, com habitações precárias, então é sempre desqualificador. No Rio não foi sempre que as pessoas se identificaram positivamente com o termo “favela”. É um processo de construção de uma identidade.
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