ENTREVISTA
Mato seco em chamas traz a linguagem radical da Ceilândia para os cinemas
Mato seco em chamas, filme dirigido por Adirley Queirós e Joana Pimenta, premiado em 36 festivais, inclusive internacionais, inaugura as sessões de estreias de filmes nacionais no Cine Brasília
- res ocupam o centro da trama de Mato seco em chamas - (crédito: Vitrine Filmes/Divulgação)
A cada mudança de cenário político, é quase uma diversão perceber a alteração de sentido numa produção filmada ao longo de um ano e meio, na Ceilândia, pelos codiretores Adirley Queirós (Branco sai, preto fica e Era uma vez, Brasília) e Joana Pimenta. Recentemente, repovoada por inacreditável parcela terrorista feminina, a Colmeia está a todo momento no imaginário (e na memória) das irmãs Chitara e Léa, respectivamente, as premiadas atrizes Joana Darc e Léa Alves, que sondam uma reaproximação. De posse de um oleoduto, que gera a virtual riqueza do petróleo, as irmãs deitam e rolam numa posição de comando e numa área convulsiva.
Ideias fixas de achacar regiões empobrecidas e propostas de silenciamento não passarão, no que depender do cinema de Pimenta e Queirós. Sem acomodar o espectador, a dupla investe em fissuras entre brasileiros, num plano misto de ficção e documentário, e dentro de um país rico em armamentos. Com a instituição e voz de comando das chamadas Gasolineiras das Kebradas, protagonistas da fita, se entende o poder de força do povo (outrora massacrado), em instâncias variadas. Constituído pelo vigor das antigas moradoras do Morro do Urubu, o setor habitacional Sol Nascente desponta e aposta na legitimidade de mulheres, antes relegadas a postos fora do mapa, dado etarismo e modelos instituídos. Canta grosso, a rede humana unida, com mais voz do que a de alguns militares vistos no filme. Subverter a ordem com o poder feminista é um dos grandes acertos vistos no longa.
Sem disfarçar limitações, o cinema da dupla abraça um visual cru — como nas cenas do corpo a corpo da candidata à deputada vivida por Andreia Vieira ou mesmo nas engenhocas bélicas vistas em cena. Ainda que pese a escolha por longas sequências (algumas, extenuantes), Mato seco em chamas investe em repensar ângulos da criminalidade — o que é um achado. O filme, por sinal, tem por mérito justo isso: revalidar (e rearranjar) um olhar sobre as riquezas da Ceilândia e valorizar o que seja, de fato, popular e honesto. O filme inaugura uma programação de estreias nacionais no Cine Brasília, e também está em cartaz no Cine Itaú.
Premiado internacionalmente, o diretor de cinema Adirley Queirós ainda não sabe exatamente onde a recorrente produção dele em cinema, que se concentra em personagens saídos da realidade da Ceilândia, se encontra. "A gente precisa de tempo para entender o impacto do cinema brasileiro contemporâneo. O que interessa para a gente é que continuamos trabalhando no nosso lugar, desde 2005. A circulação do novo filme (Mato seco em chamas, feito ao lado de Joana Pimenta) não vem com perguntas e respostas rápidas. Vai ser com discussões dentro das universidades, na rua, junto com maloqueiros, e nos presídios — nos lugares em que a gente faz filmes — que saberemos de respostas. Aliás, há 58 milhões de cinema brasileiros. Não existe uma unidade de cinema brasileiro", enfatiza.
Na eterna ebulição política nacional, que inclui a descrença no recalque da extrema direita, o filme, vocacionado a exaltar um feminismo radical, pelo que observa a diretora Joana Pimenta seguirá uma trilha orgânica. Depois de premiadas no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, as atrizes Lea Alves, Joana Darc e Andréia Vieira já têm novos papéis assegurados, depois de brilharem na tela como as imponentes Gasolineiras das Kebradas, em Mato seco. Responsabilidade social e artística saltam aos olhos, nas palavras de Joana Pimenta: "Seguiremos, amanhã, com elas fazendo mais dois, três filmes, e quem vai ter que olhar no olho delas seremos nós".
Entrevista// Adirley Queirós e Joana Pimenta
Com os novos ares políticos, você acha que o filme enfraqueceu na contestação?
Adirley Queirós: O filme está mais atual do que nunca. Foi um filme que a gente fez com tanta sacação, com tanta perspectiva de vanguarda. Na verdade é um filme anti-status quo. Não é um filme careta de linguagem. Tem uma perspectiva de pensar uma linguagem mesmo e que muda, completamente, o conteúdo que já não é tão mais importante. Ele trouxe à cena, antes do Bolsonaro, a motociata: a gente fez a motociata, antes! Desculpa se meu ego está inflado (risos). Mas é porque, ontem, passamos no Sol Nascente e todo mundo, buzinando, dizia: "e o filme?, o filme? cadê?". Fiquei muito feliz. Há a perspectiva de como essa linguagem consegue levar muito mais do que o conteúdo, digo, o conteúdo político. Não nos prendemos ao tradicional. Não adianta nada a gente falar de conteúdo e ser conservador e reacionário.
Se fossem homens no protagonismo, quão diferente seria o filme?
Joana Pimenta: Não temos que pensar essa questão como uma dualidade, acho. Cercamos a história da cidade que a gente queria contar. Tem a ver com a pesquisa proposta pelo filme: que corpo queríamos que contasse essa história? É útil reforçar que, quando houve a remoção das favelas à volta da capital, dos lugares que tinham abrigado os construtores de Brasília, houve também a remoção da zona livre da cidade, do Morro do Urubu, que era uma zona de onde vieram, sobretudo, mulheres mães solteiras, que foram removidas para Ceilândia e que, numa primeira geração, constroem a cidade. Narramos no filme a geração das filhas delas.
Qual a particularidade deste enredo?
Joana: Elas ocuparam um lugar de liderança, em termos de apropriação de espaço, depois de um processo de opressão, de cadeia. E carregavam, nos corpos, as marcas de toda essa história. Queríamos que os corpos delas fossem também uma espécie de lugar do filme. Falávamos muito delas com a ideia do western: que elas eram os caubois velhos que estavam na esquina contando suas histórias. Queríamos, no longa, uma frentista de posto de gasolina; tínhamos no roteiro. Lidamos com a questão do petróleo como bem nacional, como bem da união: pensávamos que, se o petróleo é nosso, na verdade nunca fui. Nunca foi das periferias, nunca foi das classes populares. O que que seria então uma apropriação popular do petróleo? Quando achamos a personagem, o filme precisou se reinventar. A gente precisou abrir o filme, à força de cinema, pela relação muito direta que a personagem traz com a questão da vivência no presídio.
O filme de vocês traz um apelo para a classe média?
Adirley: Não sei se nosso filme a classe média mediana gosta... A classe média não gosta. Quem gosta são as pessoas acadêmicas que ele estudam linguagem, gente da quebrada gosta demais, aliás, maloqueiro gosta demais do nosso filme. É muito massa: passasse no presídio, ia arrebentar, como foi nos Estados Unidos. Acho que no tal fetiche da classe média pela linguagem periférica — nisso, não estamos enquadrados. Por exemplo: é impressionante como a gente sempre ganha menção honrosa da classe média. Não quer dizer nada, mas é engraçado. Ele não cabe nesse lugar. Nosso público enorme vem dos lugares de escolas públicas, de festivais internacionais e nacionais que discutem em um lugar possível de produção de cinema. O cinema mundial passa pela tentativa de medianizar a linguagem, de colocar ela sempre num lugar palatável. Como se faz um filme de periferia que possa ser palatável?! Isso, naturalmente, não coincide. Se rolar, uma coisa ou outra falhou... Temos uma certa radicalidade de tentar entrar na conversa das pessoas (que farão personagens), de entender o que elas fazem e de assumir o lugar em que vivem, e, junto com elas, vem o processo fundamental de filmagem. Quando o rastro do filme acabar, no meu caso e no da Joana, a gente andará, e quando circular, essas pessoas vão perguntar para a gente e vão cobrar da gente as ações que o filme fez. O compromisso com elas é anterior ao do resultado do filme.
Apostam num entendimento amplo do filme?
Joana: Acho que um filme como este não vai ter entendimento amplo no Brasil, Estados Unidos, Portugal, e nem na China, já que existe uma linguagem universal de cinema, tipo a linguagem de acessibilidade a festivais como Cannes, como Berlim, como Locarno ou mesmo como Hollywood. Lá há série de padrões impostos, desde a duração: Deus proíbe que algum filme seja maior que uma hora e 50 minutos! (risos). Decidem a direção interna dos planos e ditam quando usar luz natural ou artificial. Filmes que têm entendimento amplo são os que não me interessa fazer e que não tenho vontade nenhuma de ver. São filmes que fecham rua, estruturam um caminhão de luz, com equipe de 50 pessoas, onde todo mundo comunicam com o assistente do assistente. É um cinema que se impõe no cotidiano e que não responde a urgências.
O filme comunica, no exterior?
Joana: Se o nosso filme não tiver um entendimento amplo, para mim, já é uma vantagem. Não é para um espectador em Portugal ou nos Estados Unidos entender a Ceilândia, nem um espectador daqui entenderia a Ceilândia. A gente tem que correr atrás das personagens, de entender o mundo que é proposto. Não é, e nunca pensei que a minha função fosse domesticar as coisas para apresentar a Ceilândia de uma forma palatável para um espectador médio. Esses são os filmes que dão mais certo: são os filmes mais intransigentes. O filme tem tido uma recepção muito interessante no exterior. Um filme de duas horas e meia que vai ter lançamento no dia 14 de abril em sala nos Estados Unidos. Um filme que todo mundo nos dizia que ia ser impossível distribuir. Depois de lançado em Portugal, irá para França, Alemanha e Estados Unidos! Então há essa questão, às vezes, de ficarmos muito preso à ideia do que a nós foi dito. Que haja determinado modelo de cinema comercial é uma besteira. O filme ganhou 36 prêmios, a gente teve críticas no The Guardian, no Libération, no Le Monde — os jornais foram incríveis. O longa esteve em listas da Artforum (revista de arte contemporâneo). Foi uma surpresa para nós também a energia que tem sido mobilizada internacionalmente à volta do filme.
Em que resultou a premiação das atrizes?
Adirley: Resultou que elas estarão no nosso filme novo, porque, contratar elas, ninguém contrata. Assim como foi com o Marquinhos do Tropa (ator recorrente da produção). Nosso filmes são os primeiros a trazer isso: trazemos essas pessoas para a cena política e pública. Eles são reconhecidos em festivais, e depois ninguém olha para eles. Falo de emprego: eles têm uma linguagem radical! Não vejo ninguém batendo na porta para empregar eles. As séries brasileiras que se dizem medianas e contemporâneas tão ligadas no ator que esquenta na Globo que se parece com o autêntico mas que aceita a linguagem imposta. Sei que, com a gente, estamos, cotidianamente, trabalhando até as 19h, acordando às sete horas da manhã, e os atores participam de tudo com a gente. O que importa para a gente está na questão do "eu posso trabalhar".
Qual a grande urgência para o cinema local?
Adirley: A gente tem que fazer uma campanha urgente para salas de cinema pública no DF. Não podemos falar de cinema, sem cinema. Salas na Ceilândia, no Recanto das Emas, nas 33 RAs que existem. Talvez, aí, a periferia pudesse ver os filmes. Nada impede que depois vejam o filme que eu gosto que é o Mad Max. Já pensou Mato seco junto com o Mad Max ou o Blade Runner numa mesma programação?! Temos que levantar uma campanha. Nosso filme tem o poder de levantar a discussão, sendo um filme reconhecido, internacionalmente. É o filme brasileiro que mais circulou. Com as conquista, precisamos avançar nas discussão mais exigentes.
Confira vídeo da entrevista com os diretores
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